Perdão, Manu.
O meu pedido de perdão póstumo é endereçado a Emanuelle Pestana de Castro, 8 aninhos, assassinada pela besta-fera Aguinaldo Guilherme Assunção (49) em Chavantes, a 379 quilômetros de São Paulo.
Peço perdão pelo que a nossa sociedade fez com você, Manu. Como toda criança, você queria apenas brincar e foi andando sozinha, até um parquinho da pequena cidade de 12 mil habitantes. Faz um tempinho, mas eu não consegui esquecer.
No curto trajeto, as ciladas do destino a fizeram encontrar-se com Aguinaldo, que você conhecia de vista, porque amigo de seu pai e morador perto de sua casinha.
Por que você caiu na armadilha? Porque você era uma criança inocente, e no silêncio com sorriso tímido dos inocentes achou interessante quando ele a convidou para chupar mangas. Era só catá-las numa fazenda a dois quilômetros de distância. O percurso seria feito rapidamente, de bicicleta.
Já morei em fazenda, em Cafelândia, quando menino, Manu. Era uma delícia subir no pé repleto de mangas, apanhá-las e ficar sob a árvore, chupando-as. Andar de bicicleta? A coisa mais comum numa área rural como a de Chavantes, que Aguinaldo escolheu cuidadosamente para matá-la.
Perdão pelo que fizemos com você, Manu.
Digo fizemos porque estamos anestesiados pela banalidade do mal, a cultura da iniquidade. Aguinaldo era o protótipo da maldade encarnada. A sociedade nem mais suspira com desalento, preferindo deixar isso para lá. Aguinaldo, saindo da adolescência e entrando na juventude, já havia matado o irmão de 25 anos porque queria tomar banho primeiro do que ele. Discutiu por causa de um sabonete. O irmão entrou no banheiro, puxou as cortinas de plástico, e foi atravessando-as com uma faca que aconteceu o assassinato. O novo Abel ficou estirado no chão, sangue correndo, enquanto o novo Caim caminhava até uma praça para brincar com cachorros. Preso, Aguinaldo ficou retido por inacreditáveis dois meses, pretexto para aplicação de medidas sócio-educativas, seja lá o que queria dizer isso. Os responsáveis por isso deveriam ter sido convidados para o funeral de Manu.
Perdão, Manu. O que fizemos, como sociedade, foi conceder uma licença para matar. Você não tinha nascido ainda, mas na cabeça de Aguinaldo foi introjetado que matar o próprio irmão é algo que pode acontecer. Perdão, Manu, mas tem gente que acredita nisso, ou faz de conta que acredita, e elabora leis, repletas de artigos e parágrafos inúteis diante do confronto diário com a realidade, que pode acontecer em Chavantes ou em qualquer ponto do País.
Perdão, Manu. Você levou três facadas nas costas, mais três no tórax, e ainda existem batráquios mais preocupados com a “motivação”, Aí, Aguinaldo, que não era trouxa, aproveitou para mentir: inventou uma “atenuante” (expressão jurídica), pensando no julgamento futuro, que seria o fato de a mãe de Manu não permitir que sua menina brincasse com um menino de 10 anos, filho de Aguinaldo. Isso poderia ter sido uma “motivação”? Só na cabeça de quem permite que sua própria inteligência seja violentamente insultada.
Para Aguinaldo, Manu seria apenas uma presa fácil. O objetivo, por óbvio, era a cobiça sexual, alimentada há tempos com observações constantes e planos de tocaia. Vítima e autor se conheciam. Sendo assim, se sobrevivente após o ataque, Manu identificaria o sinistro predador. Então…
Aguinaldo era uma bomba predadora ambulante. Já havia matado uma vez, não hesitaria em matar a segunda. As teses em contrário derretem-se nos ácidos corrosivos da vida. Mas tem gente que prefere armazenar ácidos em vez de preservar a vida. Mais uma vez, deu no que deu. Perdão, Manu.
Aguinaldo foi suficientemente cínico para “auxiliar nas buscas”. Em verdade, o prazer mórbido, quase erotizado, em estar ao lado de muita gente na busca da menina, sabendo-se autor. Uma câmera nas ruas filmou Aguinaldo com Manu. A última pessoa a ser vista com a menina ainda viva. Ou foi ele ou pelo menos saberia quem foi. Aguinaldo não resistiu ao interrogatório, cheio de minúcias. O xerife de Chavantes é bom. Abriu o jogo, contando tudo, até onde ficava o lugar onde havia abandonado o corpo. Tinha chovido muito. O local do crime, próximo a um canavial, estava encharcado, cheio de lama, enxurradas. O corpo de Manu se misturava com o barro. Restrições ao ritual humano da despedida. Manu teve que ser colocada dentro de um caixão lacrado.
Perdão, menina. Aguinaldo foi levado para a cadeia, um centro de detenção próximo a Chavantes. Ali vigora uma outra lei, distante do Código Penal. É rigorosa. Implacável. Chama-se Lei do Cão.
Os juristas caninos não toleram crimes em que crianças sejam vítimas. Por que? Porque tem muito preso que é pai, e sendo pai imagina sua menina ou seu menino sendo vítimas de um algoz de repente parceiro de cela. Não admitem.
Aguinaldo chegou à prisão sabendo disso. Estava sendo aguardado, até ansiosamente, e na prisão essa história de cela individual não significa proteção absoluta à vida.
Aguinaldo chegou à prisão sabendo disso. Estava sendo aguardado, até ansiosamente, e na prisão essa história de cela individual não significa proteção absoluta à vida.
O matador de Manu foi levado para o que na Lei do Cão se chama desfrutar do “seguro”. Fica no seguro quem está ameaçado de morte, correndo riscos pelos mais variados motivos. Aguinaldo estava automaticamente na lista do teórico seguro.
Foi encontrado morto, às cinco horas de uma manhã, pendurado na grade da cela por um lençol. O corpo foi levado para o Instituto Médico Legal, onde uma necropsia indicou a causa mortis: asfixia mecânica por enforcamento. Mas faltou um exame: o de criminalística, in loco, para indicar compatibilidade entre a altura da grade e o peso do corpo; se a altura entre a grade e o chão era suficiente para um suicídio; se a tessitura do lençol era suficientemente forte para manter Aguinaldo suspenso. Isso é perícia, não médico-legal, por conta de legistas, mas criminalística. Mas não foi feita.
A rigor, ninguém ficou preocupado com as circunstâncias, detalhes da morte, mas com o fato de Aguinaldo estar morto. Tanto que foram colocados cadeados em todos os portões do cemitério de Chavantes, onde o indesejável Aguinaldo morava: ninguém queria vê-lo enterrado ali.
“A justiça nasceu do medo de injustiça”, escreveu Horácio, poeta latino, 65 anos antes de Cristo. Portanto, “amai a justiça, ó vós que governais a terra”, disse Salomão, terceiro rei de Israel, século X a.C.
Manu está morta. Aguinaldo está morto. Mas quem pode mudar lei-proveta de crimes impunes continua vivo.
Manu não sabia que é perigoso ir a um parquinho brincar no balanço.
Manu não sabia que hoje é perigoso uma menina andar sozinha por certo tipo de lugar. Cuidado, mamães.
Manu também não sabia que pode ser perigoso gostar de chupar mangas.
Perdão, Manu.
Fonte: R7 Record TV
Percival de Souza
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